quinta-feira, 29 de setembro de 2011

José Eugenio, 1 ano de saudade

1 de outubro de 2011, 1 ano de saudade do meu querido pai. O artigo abaixo escrevi a pedido do Januario Martins, e foi publicado na revista Alta Linhagem, especifica para os campolinistas. Amigos queridos pediram q eu publicasse aqui no blog.

JOSÉ EUGENIO: “SAUDADE, UMA ETERNA SOLIDÃO ACOMPANHADA”
José Eugenio Dutra Câmara Filho (Dudu)
Quando o amigo Januário pediu-me que escrevesse um artigo sobre o meu pai, Jose Eugenio Dutra Câmara, por instantes não julguei a pessoa certa para fazê-lo, justamente pela condição de filho. Mas aceitei o desafio, com a óbvia restrição da parcialidade. O título, “saudade, uma eterna solidão acompanhada”, feliz definição de Pablo Neruda, demonstra o quão esta palavra toca a todos aqueles que amam.
José Eugênio Dutra Câmara viveu 91 anos. Nascido em Barbacena em 1919, filho, neto e bisneto de médicos, fez a opção pela odontologia, formando-se em 1941 aos 22 anos, na UFMG. Sem relação nenhuma com o meio rural, logo na infância desenvolveu sua paixão pelos cavalos, e na década de 1930 acompanhava um grande amigo da família, Dr. Paulo da Rocha Lagoa, grande conhecedor de cavalos, e obteve com esta amizade seus conhecimentos iniciais sobre os eqüinos, e exatamente o cavalo campolina.  Quando adolescente, conheceu aquele que seria seu grande amigo, Gastão Resende, que era alguns anos mais velho que ele. Gastão sempre acompanhava o famoso Joaquim Resende, Seu Quinzinho, seu pai, e poder conviver com o sucessor de Cassiano Campolina, era uma glória para o meu pai.
Ainda nos anos 30, foi fazer o ensino médio no Rio de Janeiro, para se preparar para o curso universitário. Desta época, contava uma passagem que marcou sua juventude:  Recebeu um telegrama do Dr. Paulo, avisando que Sr. Joaquim Resende havia vendido o famoso cavalo Nobre para o Rio de Janeiro, e que o mesmo desembarcaria na estação de trem e sugeriu que meu pai fosse conhecer o cavalo com a fama de ser o melhor campolina da época. E ele acompanhou não só o desembarque, mas a retirada do Nobre do centro do Rio de Janeiro. O cavalo causou alvoroço, pois sua beleza chamou atenção até do prefeito da cidade, que parou para ver o cavalo.  Porém, passando por uma vitrine, Nobre viu sua imagem no vidro, assustou-se e avançou sobre sua própria imagem, causando um desastre dantesco, pois além de ferir gravemente o cavalariço que o puxava, Nobre morreu na hora, entre vidro quebrado, urros e muito sangue, além de correria e gritaria. Foi primeira página do Globo e JB. Meu pai viu tudo, e guardava na sua memória cada instante da tragédia com o melhor campolina da época.
Relato esta historia, apenas para exemplificar tantas historias e vivencias que meu pai tinha nos mais de 70 anos que conviveu com o meio do cavalo. Após sua formatura em odontologia, resolveu criar cavalos no terreno grande que havia no quintal da casa da sua mãe, porém bem inapropriado para criar cavalos. Mas era o que podia à época. E a égua negra Gilda foi seu primeiro animal. Isto em 1942. Por 2 anos seguidos levou Gilda na exposição de São Paulo. A viagem era de trem, e ia ele e o empregado ao lado da Gilda, numa viagem de quase 24 horas.
Quando nos últimos anos, alguém reclamava com ele das dificuldades do dia a dia de criar cavalos, ele lembrava desta época, e achava graça do reclamante. Até ter sua própria fazenda, não podia ter muitos animais. Quando comprou sua primeira área rural, denominou como Fazenda Lagoa Negra. Iniciou sua criação com o prefixo Barbacena. Em 1964 passou para Lagoa Negra, como sufixo. Exerceu a odontologia em consultório por 7 anos somente,  e fez opção por ser produtor rural com vacas holandesas e cavalos campolina, pois assim se sentia feliz. Nunca teve apego a bens materiais e pela opção que fez, as contas ao final do mês quase nunca fechavam, e assim foi a vida inteira. Com 8 filhos, sempre teve de vender seus melhores animais para honrar seus compromissos, mas principalmente nunca deixar faltar nada à sua família. No final dos anos 60, resolveu criar campolina pampa, já que somente no mangalarga marchador tinha esta pelagem. Seu primeiro pampa  registrado em livro aberto foi Netuno da Lagoa Negra, nascido em 1971. Considerava os melhores animais que produziu o campeão nacional da raça/83 Ulisses da Lagoa Negra, e seu neto, JE da Lagoa Negra, este de pelagem pampa de preta. Atualmente a Fazenda Lagoa Negra encontra-se na 7º geração de campolina pampa.
Outra paixão que meu pai teve, foi sua Barbacena. Por duas vezes foi prefeito municipal. Entre inúmeras realizações, tinha orgulho das inúmeras escolas que fez, onde havia aula normal pela manhã, ensino profissionalizante à tarde e alfabetização de adultos à noite. Em cada escola havia um curso diferente: Serralheria, carpintaria, eletricidade, eletrônica, enfermagem, etc, e na zona rural havia plantação de frutas, legumes, criação de porcos, galinha e bovinos. A evasão escolar e o analfabetismo em Barbacena era o 3° menor do Brasil. E devido a este projeto meu pai foi condecorado pela ONU. Somente ele e um prefeito argentino, de Córdoba, receberam tal homenagem na America Latina.  Mesmo com viagem e estadia paga pela ONU, não quis receber pessoalmente a honraria, pois achava que tinha feito apenas uma obrigação de um agente publico eleito pelo povo para melhorar a vida dos mais humildes, e recebeu em casa pelas mãos de um Cônsul o diploma e  a medalha. Meu pai era assim, desprovido de vaidade e sempre levando uma vida módica, onde nos ensinava sempre que luxo, supérfluo e desperdício eram para rico e não para ele.
Várias vezes incentivado pela família Bias Fortes, para tentar cargos eletivos como Deputado, nunca aceitou, mesmo sendo muito querido em Barbacena e região. Foi presidente da ABCCC, arbitro e conselheiro por inúmeros anos.
Como pai e esposo, foi em minha opinião o que melhor fez na vida. Não tenho palavras para descrever a paixão que tinha por ele em vida e continuo a ter após sua partida. Era meu melhor amigo.  Quando viu que eu gostava de cavalos, sempre me incentivou. Quando as nacionais eram itinerantes (1965 a 1983), organizadas pelo Governo Federal, sempre me levava, sendo a primeira em Curitiba, 1969, quando eu tinha 5 anos. A maioria destas nacionais era em julho, mas teve uma época que passou para novembro, e ele me desafiava:   “ Se você passar de ano, ainda com as notas de setembro, eu te levo”. Claro que eu aceitava e cumpria o objetivo. Lembro-me que as vésperas para viajarmos para a exposição nacional de 1976, em São Paulo, tive uma febre alta, e ele passou a noite toda sentado ao meu lado, sem dormir, esperando por minha melhora. Era teimoso, principalmente com o passar dos anos, característica dos idosos, mas sempre tinha um argumento pitoresco para sustentar suas teimosias. Quem o conheceu sabe o quanto era divertido e bem humorado. Contador de “causos”, nos últimos anos ia ao Banco sempre às terças feiras, e por lá ficava 2, 3 horas, pois juntava gente para conversar e ouvir seus casos, chegando ao ponto que o gerente reservou uma sala para meu pai conversar com tantos amigos que o tratavam com tanta devoção. Era um pai muito especial, pois tinha um carisma enorme, que dava a todos seus filhos uma sensação de orgulho e honra de serem seus filhos. Como esposo, foi casado com minha mãe Dora, por 61 anos. Nos últimos anos, minha mãe vive num mundinho próprio, com uma vida quase vegetativa, e o carinho, o amor e dedicação do meu pai por ela era comovente e exemplar. Desde então, se recusava  sair à noite, e viagem somente se fosse para voltar no mesmo dia, pois adorava ficar horas sentado ao lado de minha mãe, segurando sua mão.
Quis o destino, que dos 8 filhos, 4 se foram antes dele, e ainda um genro e sua neta mais velha. Nunca queixou de Deus, pelo contrario, aceitou estes percalços com muito sofrimento, mas com a certeza que a Viagem que nada mais é a vida de cada um, na estação da eternidade, ao fim da sua viagem, reencontraria todos eles. E assim foi no dia 01 de outubro de 2010. Deixou conosco minha mãe, sua amada Dora, mas que também um dia será recebida nesta estação para que juntos vivam a eternidade com a mesma felicidade que na curta viagem da vida viveram. Tenho certeza que meu pai está muito feliz com seus filhos que há muito ele não via. Isto conforta. Por isso creio.
Tive uma relação muita intensa com meu pai, repito, simplesmente meu melhor amigo, meu exemplo, a quem sempre amarei muito. Mas mesmo assim, na falta dele, fica aquela sensação que a intensidade poderia ainda ser maior. Para quem ainda tem seu pai, mesmo achando que o convívio é muito intenso, como era o meu, sugiro que o visite mais, abrace-o mais, beije-o mais, converse mais.  Eles são únicos.  
Estou escrevendo este artigo justamente num domingo, dia dos pais, o primeiro sem poder abraçá-lo. O teclado já está molhado. Inevitável. Não sei quanto tempo minha viagem vai durar, até poder revê-lo. A dor é forte. Dor da saudade. Atenuada pela certeza ter tido um pai tão especial e amado. E ao terminar, vou plagiar a frase que meu pai escreveu quando da perda do meu irmão Luiz Ângelo, com a modificação necessária: “ Meu pai, tão grande quanto a dor em te perder, foi a glória e o orgulho de ter sido seu filho. Deus te abençoe , até o fim de todos os tempos”.
Um beijo carinhoso, meu pai. Um dia, nos revemos. Até lá. 

José Eugênio Dutra Câmara Filho
Barbacena, 14 de agosto de 2011